Porque NPCs merecem sofrer

Volta e meia vejo reclamações sobre narradores que criam e usam NPCs poderosos e invencíveis em suas campanhas, verdadeiras paixonites de tão apegados a esses personagens (que deveriam ser) coadjuvantes. O problema é tão atemporal que existe uma corruptela pejorativa das siglas PdM (Protegido do Mestre) e NPC (Ninguém Pode Comigo).

Pois bem, pessoalmente acho que narradores que se prendem a isso perdem muito mais do que ganham. Praticar a “cultura do desapego” traz tantas vantagens narrativas que eu nem sei mais como viver sem ser um assassino de NPCs (e algumas vezes, isso deixa meus jogadores desesperados; que coisa, não?). Explico tudo a seguir.

Não é segredo para ninguém que George R. R. Martin é um autor sanguinário. Nenhum personagem está a salvo nas suas Crônicas de Gelo e Fogo, e a internet está inundada de piadas sobre os montes de personagens que morrem ou se dão muito mal nessa franquia.

Mas eu aprendi bem antes como  histórias podem ser divertidas quando um narrador faz os NPCs sofrerem e os mata como moscas: Hiroki Endo, do mangá Éden (fantástico, mas descontinuado aqui no Brasil). Assim como na série de fantasia, ninguém estava a salvo nos quadrinhos de Endo, e eu já me senti muito mal ao ver personagens queridíssimos sofrerem mortes horrendas, ficarem desfigurados e tudo mais.

A motivação óbvia e principal desse tipo de narrativa é a verossimilhança –  pessoas morrem, o mundo é perigoso e cruel. Mesmo em estórias mais heroicas, a morte de parentes e amigos dá uma carga dramática importante e motivadora aos protagonistas. Como geralmente os personagens mais invencíveis do narrador são mentores, aliados mais fortes ou vilões, matá-los ou fazê-los sofrerem também mostra que as pessoas cometem erros e possuem as mesmas chances de falha e sucesso que os PJs (eu vejo o mundo pelos olhos dos meus NPCs, assim como os jogadores vêem pelos olhos de seus caras; eu os faço agir de acordo com suas índoles quando se deparam com as situações. Falo mais disso aqui).

Além disso, muitas vezes mostra que a coisa é séria – assim como muitos filmes, personagens menos importantes (figurantes, capangas ou coadjuvantes) morrem antes, caindo numa armadilha ou ativando uma proteção mortal da dungeon, para que a atmosfera de perigo seja instaurada. Se acontece com um NPC, o jogador sabe que pode acontecer com ele. E o efeito inverso: os jogadores vêem que não são só eles que sofrem nesse mundão sacana.

Inclusive, este é um ótimo motivo para que os NPCs mais poderosos do cenário não resolvam os problemas todos da ambientação. Eles não querem se arriscar, porque não são invencíveis, e o preço da vitória pode ser muito alto – especialmente se outros poderosos (que estão de olho no tabuleiro) resolvem fazer seus próprios movimentos. Se o ato de uma tropa andar noutro território pode ser interpretado como declaração de guerra, imagine como é a desconfiança quando um mago épico brinca no quintal de outro.

A cereja do bolo é a seguinte: quando os personagens se apegam a um NPC e ele vira um ente querido – não sei nos grupos de vocês, mas aqui isso acontece bastante -, e você o mata ou prejudica, é como se tirasse o chão dos jogadores. Eles sentem o impacto dramático da coisa, e se interessam muito mais pelo jogo, seja pelo niilismo da coisa, ou por algum sentimento de vingança ou urgência para salvar o cara. Quando você faz isso com alguém que eles odeiam bastante, ou lutaram muito contra, você lhes dá uma catarse altamente recompensadora (para você também). Eles sentem que seu trabalho valeu a pena, e você sente que está com jogadores satisfeitos.

Lembro de uma ocasião de um jogo meu onde uma capitã de cavaleiros sempre dava uma de gostosona para cima dos PJs (seu nome era Aria “Bocasuja” Azeran, porque ela era desbocada pra cacete). Ela seguiu com eles para explorar uma floresta atrás de pistas de uma nobre sequestrada, e enquanto discutia feio com alguns PJs, foi arrebatada por grifos e, após alguns rounds de combate, despencou ao chão quase morta. Ela era certamente mais poderosa e durona que eles, mas sofreu ataques bem aplicados e devastadores e deu azar nos dados, e se ferrou.

Na hora os jogadores zoaram bastante dela (“Toma, bem feito, sua bitch!”), mas minha mensagem foi passada e todos ficaram mais cautelosos. Na minha Canção Escarlate, o xerife que estava virando amigão dos personagens virou um monstro, e todo mundo ficou tristonho. E nem vou falar de quantos vilões legais foram para o saco sem dó, com a galera vibrando e se sentindo vingada.

Em parte, entendo que seja uma porrada no ego do narrador fazer seus NPCs sofrerem e morrerem, em parte porque eles muitas vezes se dedicam a fazer personagens legais e tal, e mais ainda porque os jogadores costumam choramingar quando os NPCs são poderosos, mas se eles se dão mal, desatam a tirar sarro e depreciar. Ou então ele fica sentindo que “entregou o ouro” quando um vilão morre, ou é seriamente prejudicado.

Mas veja: eu estou ali para se divertir e divertir os jogadores, ou seja, todo mundo precisa ganhar. E vale muuuuito a pena perder um bom personagem graças ao impacto causado nos PJs quando um personagem a quem eles se apegaram, ou que detestam muito, morre ou se dá mal. Além disso, eu tenho centenas de outros bons personagens na campanha.

É por isso que eu acho que NPCs devem falhar e se dar mal, tanto quanto os personagens do jogadores. Quando estou me apegando demais aos meus personagens, é porque estou mestrando demais e jogando de menos. Aí é só fazer birra para voltar à cadeira de jogador durante algum tempo e fica tudo certo!

E vocês? Preferem os Ninguém Pode Comigo ou martinizam todo mundo?

20 comentários em “Porque NPCs merecem sofrer

  1. Uma ótima postagem. Parando para pensar, nunca matei um PdM apenas para incentivar algum sentimento nos jogadores, preciso estudar melhor o uso deles, incluindo os vilões.

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  2. Eu não tenho apego ao NpC justamente por concordar com o você sobre o fato de eles serem coadjuvantes. Quando eu mestro eu deixo bem claro aos meus jogadores que o heróis da história são eles, portanto, se eles falharem vai tudo pro brejo.

    Mas, gosto de dar uma certa personalidade para os meus npcs, acho que é uma forma legal de se aprimorar a narrativa, e manter os players atentos.

    certa vez, uma jogadora tinha uma companheira de viagem e aventuras e ao mesmo tempo tinha uma iminiga mortal que viva tirando onda da cara dela e tentando assassiná-la,que no final ela descobriu serem a mesma pessoa!

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  3. Particularmente não gosto dessa de “vocês são OS heróis”, bem pelo contrário, gosto de dizer “vocês são pouco mais que um sitiante, ferreiro… vocês são AVENTUREIROS”. O mundo não gira em torno de nenhum PdJ, claro que eles podem adquirir diversas honrarias durante uma campanha e serem até considerados heróis por muitos, mas eles são aventureiros, fazem isso por puro e simples interesse – seja fama, glória, riqueza, reconhecimento, sangue em batalha, conhecimento ou qualquer outro -, que normalmente é realmente o que fazem. Até mesmo quando eles são os heróis seria pueril imaginar um cavaleiro de armadura reluzente, mas sim alguém forte de coração que tenta resistir às diversas provações de um mundo sombrio, fantástico e cheio de coisas muito além das aberrações que permeiam os sonhos mais caóticos de um lunático.

    Claro que isso é só uma preferencia pessoal.

    Talvez essa mesma preferencia tenha feito com que eu criasse apenas PdM como pessoas comuns, fadadas aos erros humanos e nunca como “Ninguém Pode Comigo”. Uma coisa que realmente preciso é criar mais ligações entre os personagens e ver cada um sofrer com as perdas de forma terrível daqueles que ganharam uma certa afinidade. Uma anotação para minha próxima campanha o/

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  4. Depois que descobri que a história fica bem realista quando alguém se fode, perdi um pouco de interesse em algumas histórias por aí. Ver o pessoal sofrer e se fuder como seria no mundo real me dá a sensação que aquele universo realmente existe e que não é só mais uma história. Me faz sentir que os personagens realmente vivem e que a morte deles pode estar logo ali, assim como a nossa. Dá vida à eles e isso é bem legal. =D

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  5. Jogamos uma campanha de Vampiro a mascara por uns 7 anos. Um dos NPCs morreu logo no inicio, se sacrificado para segurar um monte de Vampiros enquanto o grupo fugia e detonava os explosivos colocados no local. Esse NPC tinha o hábito de mijar nos vampiros quando acabava com eles. Desde a morte dele, até o final da campanha , uns 6 anos jogando, os Pcs do grupo começaram a mijar nos vampiros mortos para honrar a morte dele hahaha

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  6. Eu também faço isso. Várias e várias vezes já matei sanguinariamente os npcs mais queridos pelo jogadores. Isso os deixava com desejo de vingança e apimentava ainda mais a campanha. É muito bom. Quem não faz, tente fazer em alguma sessão. Pode ajudar até mesmo a um grupo um pouco desmotivado.

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  7. E digo mais: pode dar de volta “a cola” de um grupo que está com problemas ou desunido. Numa campanha minha, o pessoal estava brigando bastante e em vias de se separar. Em off, ninguém queria isso, mas também não queria forçar a barra pra ficar junto. Aí descobriram em on que os subordinados da companhia deles tinham sido atacados enquanto eles estavam fora, e muitos morreram ou foram presos. Na hora se uniram novamente!

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  8. Perfeito Dan. Você falou tudo que eu tenho para falar sobre o uso de NPCs nos meus jogos também. Já teve vezes que teve jogador puto comigo porque maltratei um NPC, olha que eu nem matei ele.

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  9. A questão nunca é os personagens dos jogadores serem ou não serem “os heróis”, isso é só questão de gosto.

    O que é importante lembrar quando se mestra é que os personagens dos jogadores sempre devem ser os PROTAGONISTAS, sejam eles heróis ou não.

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  10. Me identifiquei muito no texto. Quem joga comigo sabe que eu tenho uma adoração por quem mata meus NPCs, principalmente vilões…pq afinal eles são vilões.

    Sensacional o texto e espero que cure aqueles mestres que ainda se acham jogadores.

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