Amizade, confiança e credulidade em jogos de RPG

Uma das coisas que mais gosto de filmes como Guardiões da Galáxia é que estão trazendo de volta à cultura pop valores que estavam fora de moda, como amizade, confiança, credulidade e respeito. Qualidades essas que se perderam no RPG, com intriga gótica, fantasia dark/gritty, etc.

Isso se reflete na sensação amarga de que os grupos de PJs estão juntos sem motivo, e a busca pela profundidade de personagem causa brigas e rachas. Além disso, jogadores desconfiam do cenário inteiro e todos os NPCs estão sempre desconfiados com eles (e haja piada do ‘slot de mago’ no The Gamers).

Lendo O Guerreiro Pagão, de Bernard Cornwell, achei bonito quando o protagonista falou de personagens que são mais que amigos, são irmãos. Portanto, aqui quero ir mais além: argumentar que os PJs podem ser amigos verdadeiros, encontrar amigos no cenário e não achar tosco que as pessoas confiem neles e vice-versa, ao menos de vez em quando.

(este artigo não fala dos jogos com abordagem diferenciada (tramas policiais, detetives do sobrenatural, faroeste, japão feudal, etc.), e sim de RPGs com valores morais diferentes, como fantasia medieval.)

A gente costuma olhar o assunto no contexto contemporâneo em que estamos inseridos, onde vivemos em “tribos”, demoramos para nos apegar às pessoas e não confiamos em ninguém, exceto por escrito ou com muita convivência. Mesmo os amigos são passageiros, aqueles com quem você convive no momento; desses, só os verdadeiros ficam.

akane-victorNas ambientações dos jogos, porém, os valores são outros. Faltar com a palavra, quebrar um juramento e coisas assim são consideradas graves desonras, e mesmo personagens ardilosos escondem bem as suas (intrigas de corte são como são por conta disso, vide Game of Thrones).

Além disso, a vida é bem mais perigosa e os laços e relações são valorizados. É natural que se confie em alguém que te estenda a mão, passe por perrengues com você (ou por você) ou se prove verdadeiro seja considerado amigo. Ao menos até que se prove o contrário.

(veja que isso é diferente de maniqueísmo: estamos falando de aliados, amigos, irmãos de armas, inimigos velados ou jurados de morte.)

Se essa mentalidade prevalece na narrativa, tem muito mais valor quando esses valores são quebrados. Traições são mais chocantes, assassinatos são mais terríveis, etc. O Casamento Vermelho de Game of Thrones, por exemplo, é tão importante pela chacina, mas também porque a lei do anfitrião e a santidade do casamento foram jogadas pela janela, e tudo desencadeado pela quebra da palavra de Robb Stark.

Isso nos ajuda a entender também porque grupos podem sim se apegar e ter amizade rapidamente. Guardiões da Galáxia é uma aula de como juntar uma boa equipe: além deles terem passado muito tempo não mostrado juntos nas 2 horas de filme, tem o lance de aliados contra tudo e todos, que viram irmãos de armas. Eu já escrevi, aliás, grupos que funcionam sem forçar a barra.

Os jogadores desses personagens, que eram irmãos, se chamam de 'mano' e 'mana' até hoje.
Os jogadores desses personagens, que eram irmãos, se chamam de ‘mano’ e ‘mana’ até hoje.

Já tive uma campanha onde tínhamos laços muito fortes construídos no jogo, cujos personagens eram amigos de verdade. Os personagens tinham pensamentos parecidos, mas ainda assim era bacana ver isso.

Eu sei que parece difícil essa abstração toda, mas se todo mundo tiver em mente que a mentalidade é outra, dá certo e tudo faz sentido.

Então, é bom pensar duas vezes antes de chamar um personagem de tapado ao vê-lo confiar em outro, ou ao fazer alguma ação por amizade, confiança, amor ou ingenuidade. Porque quase sempre ele vai estar em uma situação condizente com o contexto e ambiente onde está inserido.

5 comentários em “Amizade, confiança e credulidade em jogos de RPG

  1. Eu sinto falta de uma boa e verdadeira amizade em ON. Considerar alguém um verdadeiro irmão é um privilégio e uma coisa incrível.

    Lembrei agora da amizade torta de Nismet e Graham, no fundo ela o considera um verdadeiro amigo e irmão.

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  2. Saudações Dan.

    Sempre gosto de desenvolver meus personagens sobre a ótima da amizade e focado no grupo. O jogo só tende a ficar melhor e para campanhas, não vejo melhor forma de iniciá-las do que construindo laços sólidos entre os personagens.

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  3. Belo post. Acho que as vezes a gente joga alguns complexos de desconfiança dentro de jogo e isso dificulta algumas amizades em ON e torna coisas amizades simples e em turbulentas. Podendo até atrapalhar o jogo.

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