Downtime e a passagem do tempo

Uma dificuldade recorrente nos meus jogos é a passagem do tempo. Sempre me incomodou o fato de uma campanha durar anos no mundo real e semanas ingame. A gente sente que os personagens amadureceram, envelheceram, mas na real passaram seis meses desde o nível 1.

Até recentemente, eu nunca tinha me tocado que parte disso acontece porque minhas campanhas possuem um fio condutor muito forte. Assim, os jogadores sempre estão engajados numa guerra, salvando o reino, lutando contra algum poder maior e coisas assim. Quando a gente era jovem e desocupado na escola, eu narrava muito do cotidiano dos personagens e algumas pessoas achavam ruim, e num esforço pra deixar meus jogos mais dinâmicos, acabei acelerando demais.

Com a quinta edição de D&D, conheci as Downtime Activities – ou Atividades de Tempo Livre, na tradução da Redbox (que é a que vale). Basicamente, atenção e algumas regrinhas para resolver coisas que os personagens dos jogadores fazem entre uma aventura e outra. Não lembro muito de ter lido sobre isso antes, mas ao ouvir o episódio do Rolando 20 sobre isso (vale a pena ouvir), me dei conta de que é um conceito antigo, eu é que não usava direito.

Basicamente, é recomendável dar uma “pausa” nos eventos da campanha ao final de cada história, arco de histórias ou em um ponto onde as coisas possam ficar mais paradas (como o inverno, ou quando o grupo precisa obter informações ou se preparar pra algo grande). Nesse período, os jogadores podem ir para casa e fazer “nos bastidores” algumas coisas: como descansar, vender e comprar (ou mandar fazer) itens, construir coisas, trabalhar, se jogar na boemia, espalhar boatos, arranjar contatos, gerir um negócio, fazer pesquisas, treinar e coisas assim.

Além de passar o tempo, estabelecer atividades downtime direitinho ajuda no desenvolvimento dos personagens, permite resolver coisas que sempre ficam pendentes num período fora de sessões habituais (idealmente pela internet) e pode até gerar plots pessoais que podem ser resolvidos sem necessariamente tomar tempo do jogo coletivo – o que pra mim cai como uma luva, já que hoje em dia é muito difícil reunir um grupo (já faz uns 3 meses desde que mestrei pela última vez, por exemplo).

O D&D 5E tem regrinhas bem legais pra determinar quanto tempo essas coisas levam, o que se conseguiu, adicionar complicações e etc. Tem várias atividades nos livros, mas você pode encontrar um Unearthed Arcana com muito material aproveitável. As regras são bem úteis porque dão várias orientações pra você não ter muito trabalho.

Por exemplo, uma das atividades é “Gerir um Negócio”, e nela você define se naquele mês o estabelecimento deu lucro, que problemas os jogadores tiveram que resolver e tudo mais. Ótimo pra agradar aqueles jogadores empreendedores, sem deixar o jogo chato.

Meus jogos sempre foram mais corridos porque eu sempre achei estranho os protagonistas estarem Lutando Contra o Poderoso Mal ou Buscando a Grande Vingança e ficarem tirando folga. Acontece que as pessoas precisam de tempo pra respirar, mesmo numa guerra. Descansar, recarregar seus recursos, consertar armaduras e armas, pesquisar novas magias, comprar e vender itens, gastar todo seu ouro na taverna (essa é sempre boa), ou qualquer outra atividade do cotidiano – ou mesmo uma preparação pra estar melhor equipados pra próxima aventura.

Inclusive, lembro de jogadores pedindo pra eu dar um fôlego pra eles escreverem pergaminhos, arranjarem coisas e tudo mais, e fico um pouco triste de não ter dado esse espaço. Pra quem se gabava de ter um jogo cheio de “verossimilhança”, negligenciei por muito tempo esse aspecto…

Não é bem uma questão de reinventar a roda, é só uma mudança de paradigma. Ao invés de atropelar os plots, essas regrinhas e esse conceito me permitiu pensar mais em termos de compartimentar melhor os aspectos de uma campanha, que é, afinal, acompanhar um período da vida de pessoinhas imaginárias. Com o tempo li jogos que inserem grandes períodos de tempo entre as histórias (Blood & Honor, por exemplo, recomenda uma história por estação), e vi pessoas que aplicam esse tipo de coisa mesmo em outros sistemas. Não cheguei a ler O Um Anel, mas se não me engano as coisas são mais assim por lá também.

Aliás, engraçado como é uma coisa moderna – e meio de games – essa necessidade de rapidez. Li esses dias Os Três Mosqueteiros e os personagens passam meses no downtime entre os eventos importantes. Em O Senhor dos Aneis, são literalmente anos entre Bilbo se mandar do Condado, Gandalf pesquisar sobre Sauron e Frodo ir pra aventura. Claro que são exemplos exagerados, mas é uma curiosidade válida.

Desde que comecei a ler os livros da 5E, estava com vontade de pôr tudo isto em prática. A oportunidade surgiu depois da última sessão que mestrei da nossa campanha com a companhia mercenária, em que o grupo precisou parar tanto porque a organização e estabelecimento da companhia na cidade carecia de atenção, quanto era necessário pesquisar sobre o culto que eles estão enfrentando e se preparar para o próximo arco de aventuras. Aí os jogadores aproveitaram pra se reabastecer, ir atrás de velhos inimigos, obter muitas informações, fazer contatos… E só nessa sessão de downtime – resolvida no nosso grupo do Facebook – consegui passar quase dois meses ingame!

Sei que essa besteirinha – que só é novidade pra mim – não vai fazer com que as campanhas durem anos dentro do cenário, mas pelo menos acredito que vá diminuir nossa impressão de que o tempo passa rápido demais e que os protagonistas nunca conseguem respirar. Afinal, desacelerar é preciso.

8 comentários em “Downtime e a passagem do tempo

  1. Isso é algo que sempre procurei usar. Da última vez que narrei a galera passou 2 níveis e em ingame passaram alguns meses entre tempo de viagem e descanso entre as aventuras (também larguei a ideia de que em toda viagem alguma coisa precisa acontecer… as vezes é possível que a viagem seja só uma viagem tranquila, se você usa rotas mais conhecidas e tal).

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  2. Isso é algo que eu não usava até ler esse trecho na 5e quando saiu. Hoje em dia eu não posso dizer que uso com frequência por mestrar para grupos enormes – nesse caso ir direto para a ação é necessário. Mas pego a filosofia de que precisam gastar dinheiro nas cidades, que há intervalos entre aventuras e tudo mais.

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  3. Escrevi um suplemento pra 5e com idades mínimas pra alcançar os níveis, com base na ideia de um mago de 20º nível já ser bem idoso, e talvez procurar pela prolongação da vida ou imortalidade só pra poder chegar nesse nível. Eu queria narrar uma campanha com isso incluído, colocando uma temporalidade mais realista, separando os eventos no tempo, com grandes períodos de treinos, estudos, etc., mas entendo que isso pode ser difícil pros jogadores assimilarem, porque é algo bem ausente dos filmes, quadrinhos, etc.

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  4. Eu sempre usei o Downtime nas minhas campanhas longas, mas nunca um sistema como o D&D 5E fornece, eu geralmente peço para meus jogadores me escreverem uma pequena descrição do que eles fizeram no tempo determinado, sugiro opções pelo cenário em que eles vão ficar e sigo o bonde.

    Uma dica boa é linkar seus jogadores com uma locação só, um vilarejo ou fortaleza, e isso vai lhe dar muito material para as ações em downtime bem completinhas, os jogadores costumam se esforçar quando vêem que suas ações fazem mudanças no cenário.

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  5. Essa birosca está cada dia melhor!
    Embora utilize uma construção diferente sobre o downtime nas minhas mesas, eu procuro fazer com que ele aconteça ao final de cada parte da campanha como se fosse o intervalo entre duas temporadas de um seriado. Assim o tempo pode passar de forma mais solta e sustentando algumas mudanças significativas com os personagens e com o grupo.

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  6. Sempre fui muito atento a isso, a passagem de tempo sempre foi um ponto marcante em meus jogos.
    Curiosidade: Gostaria de conhecer seu metodo usando Storyteling fantasia medieval.

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