Conto – Love the way you die

Os gatos pularam, amedrontados, quando o carro atingiu as latas de lixo. Janice freou tão bruscamente que a calota saiu quicando pela rua. Desceu do carro e fechou a porta com um estrondo, praguejando enquanto atravessava o jardim. Barnes veio correndo com alegria, mas a expressão da mulher era tão fechada que o retriever hesitou a meio caminho. A porta da frente estava entreaberta, mas Janice fez questão de chutá-la para alertar que havia chegado em casa. Barnes preferiu se encolher no canto da sala e observar sua dona gritar pelo marido pelos cômodos do andar de baixo.

Encontrou Eddie na cozinha, sentado à mesa com uma cerveja na mão. Estava tão esfarrapado e ferido quanto Janice, com a camiseta branca ensanguentada e rasgada, e a calça jeans imunda. Janice tinha a jaqueta arruinada, deixando aparecer as tatuagens dos braços, mais visíveis que as do marido a esta altura. Ele a fitou com o semblante cansado, sem saber se a lágrima que teimava em rolar no rosto da esposa traduzia a fúria lívida do seu rosto ou a decepção escondida por trás dele.

Foi um longo, tenso e silencioso momento.

– Você… fugiu – encontrou forças para balbuciar.

– Jan, eu…

– Não se justifique! Não… não diga nada, filho da puta – ela lutava contra a fúria pulsante.

Com um esgar, Eddie tomou um gole. Derrotado e ferido, em corpo e alma.

– Esperava um pouco de compreensão de você, amor. Somos iguais, e eu disse um milhão de vezes que ia dar merda.

– Compreensão? Compreensão? Não tem como perdoar você, seu bosta. Você nos deixou lá para morrer! Nossos amigos estão mortos agora, as aranhas devorando eles nesse exato momento! Espera que eles te perdoem também, caralho?

Janice estava gritando, e os vizinhos já se preparavam para, mais uma vez, ligar para a polícia. Era um casal conturbado. Eddie levantou bruscamente e fez frente à esposa, levantando a voz.

– Não era o que vocês queriam, Jan? Uma maldita morte honrada? Mas eu te digo, pra mim isso não tem nada de sacrifício em batalha, bela morte ou qualquer merda grega do tipo! Aquilo lá era uma porra dum suicídio e você sabia disso!

– Era um suicídio! Sabíamos disso e era necessário! Agora a porra do locus foi pro inferno, Nuvem Vermelha foi destruído e a culpa é sua! Perdemos nossa família e agora todo mundo na nossa área está fudido, tudo porque um dia Smith aceitou você, um cachorro de rua de merda, e eu me afeiçoei a esta sua carinha de bebê!

Barnes se encolhia cada vez mais com os gritos dos donos, agora mais inflamados que nunca. As crianças do bairro, curiosas com aquilo tudo, examinavam o Mustang vermelho 1977 amassado e imundo na frente da casa, e se apertavam no portão para tentar ver algo de esguelha da briga dos dois.

– Nuvem Vermelha queria fugir, sua idiota! Ele armou tudo isto pra se mandar quando a gente estivesse encurralado pelas chusmas e por Sombra Sibilante, e ninguém acreditou em mim quando eu disse!

– Quê? – a revolta de Janice estava cada vez mais difícil de conter. Eddie quebrou a garrafa no chão – Você tá usando isso como desculpa esfarrapada! Está tudo perdido e você nem sequer admite a enorme cagada que deu!

– Você tá puta da vida porque não morreu com os outros e agora o inferno inteiro tá atrás de nós, incluindo Rhodes e Espírito da Tempestade, isso sim.

– Eu não vou mais ouvir isso. Foda-se, Edwin, e morra sozinho como o covarde que é.

Janice era um vulcão prestes a explodir ao girar nos calcanhares. Ódio, desespero e sofrimento, os três demônios do homem. Se sentia traída, apunhalada pelo homem com quem havia escolhido passar o resto da vida, aquele que mais amava, por cima das leis e de toda a decência de seu povo, e contrariando todos os juramentos. O julgara adequado como companheiro e perfeito como alma gêmea, mas agora se revelava ardiloso e indigno de confiança. Estava pronta para ir embora, sumir e nunca mais voltar. Talvez isso fosse o melhor para seus protegidos, ou talvez fosse imprescindível que ficasse e lutasse, porque seus inimigos usariam de qualquer recurso para atingi-la naquelas circunstâncias.

Até então Eddie tentava se controlar, conhecendo o temperamento da esposa. Mas aquelas últimas palavras o levaram ao limite.

– Espere aí, sua… – ainda segurava o braço de Janice e se preparava para esbofeteá-la quando ela girou de punho fechado, acertando em cheio um estrondoso murro na bochecha de Eddie. Dentes quebraram e ele cambaleou para trás antes de cair. Logo precisou se esquivar de um chute da mulher, completamente consumida pela ira.

Eddie se arrastou alguns metros e, depois de uma cambalhota, levantou bem a tempo de defender um ágil golpe da esposa, que juntou as duas mãos e se jogou nele. Os dois rolaram até o corredor, e Janice acertou-lhe alguns socos, urrando enlouquecida. Eddie estava atordoado, se defendendo como podia, mas acertou uma joelhada no abdome da mulher e travou seu braço em uma chave que a obrigou a girar o corpo. Passou por cima da garota e lhe acertou uma cabeçada no nariz, de onde jorrou sangue farto. Janice chutou-lhe as partes baixas e o jogou longe. Ed rapidamente levantou, mantendo-se agachado e de prontidão, por mais que latejasse.

Marido e mulher se encararam, cólera avermelhando seus rostos, pupilas dilatadas, veias saltando. Dois predadores natos. A besta interior lutava para se libertar, e ambos desistiram de contê-la. Unhas tornaram-se garras, pêlos cresceram por sobre a pele machucada, ossos estalaram enquanto os músculos cresciam grotesca e desordenadamente. Os dentes cerrados se afiavam, acompanhando a boca que se transformava em um longo focinho canino e as orelhas se projetavam para trás. Era o espírito mais horrendo e poderoso da batalha, o recurso final para qualquer um nascido como eles. Sem demora, os dois se chocaram com garras e dentes, juntando sangue e fúria. Uma estante tombou, quebrando anos e anos de lembranças em porta-retratos e badulaques. Sofás viraram, a mesa se espatifou e toda a casa ecoava com os sons de rosnados, pancadas e estilhaços daquela dança da morte.

Em poucos segundos de luta, os dois caíram no chão, com as mandíbulas cravadas um no outro. Janice mordia a jugular do homem que amava, com sangue nos olhos e vontade de matar. Eddie puxava o ombro da esposa com vigor, tentando afastá-la enquanto os dendes pontiagudos penetravam fundo na carne. Barnes latia descontroladamente, sem saber o que fazer, e as pessoas já se amontoavam na rua, tentando decidir se alguém ia tentar separar o violento casal e se perguntando quando uma viatura ia aparecer. Enquanto isso, os dois rolavam pelo chão da sala destruída, se espancando enquanto tentavam desferir mordidas mais poderosas. Uma fagulha de humanidade passou por Edwin, e ele afastou Janice com um empurrão súbito e o soco mais forte que conseguiu aplicar no tórax da amada. Ela foi jogada para trás e cambaleou, se segurando no que restara da mesa de centro. Agarrou a caixa inútil que fora a TV (estava quebrada mesmo) e arremessou no marido, que rolou para esquivar da caixa que acabou acertando o cachorro estrondosamente. Os latidos cessaram.

A razão começava a fazer força para sobrepujar a raiva no coração do rapaz, e seu hediondo corpanzil começou a diminuir enquanto ele saltava para os lados para não ser atingido pelos objetos pesados que Janice, completamente enlouquecida, arremessava. Atravessou a sala sendo acertado por uma ou outra coisa, até que a garota se cansou e novamente correu em sua direção. Os dois se chocaram novamente, e Eddie bateu violentamente contra a parede, quebrando vários ossos com o impacto.

O remorso veio ao ver o marido inerte no chão, e sua forma diminuiu enquanto ela arfava e sentia a dor dos ferimentos de presas e unhas que não se regeneraria. Aos estalos e subitamente, os ossos de Ed voltaram ao lugar, e este levantou com raiva renovada. Mais uma vez os dois se jogaram ao chão, em uma forma intermediária que lembrava eles mesmos com músculos maiores e rostos bestiais, trocando socos e pontapés. Jan lhe acertou dois murros ruidosos e rasgou parte de seu rosto com as garras, mas logo todo o ar lhe fugiu dos pulmões com uma sequência inumana de socos no estômago. Ela arfou e começou a apertar o pescoço de Eddie com as mãos. Os dois estavam ali deitados em um impasse, confusos quanto aos sentimentos, em meio a fotos de uma vida conturbada mas feliz enquanto eles enfrentavam o mundo juntos. Então, eles se abraçaram com força e começaram a se beijar com sofreguidão.

Raiva se transformava em urgência. Seus corpos arderam da adrenalina ao fogo, da raiva à paixão. Era um turbilhão de sensações, uma inexplicável troca de amor e ódio, enquanto eles rolavam no chão e não se importavam em se cortar nos cacos de vidros ou apertar seus corpos combalidos. As roupas rasgadas foram afastadas onde era necessário e, mais uma vez, como em todos aqueles anos acontecia, a luta terminava no chão, em suor e lágrimas. Foi rápido – logo os dois arfavam, unidos em um abraço que misturava o sangue dos dois, derramado por eles mesmos. Os olhos se encontravam em absoluta ternura.

E então Janice atravessou o pescoço de Eddie com uma faca de prata.

Observou a expressão do marido ir da dor à placidez. Longos minutos se passavam até que encontrasse forças para se desvencilhar do cadáver do marido. Sentou no que havia sobrado do sofá, ainda com a cabeça incapaz de articular pensamentos complexos. As lágrimas vieram fartas, com tudo que implicavam e com todo o peso do mundo, limpando o rosto sujo, deixando rastros na poeira e no sangue, mas ela ainda não podia se entregar. O instinto avisou do barulho de sirenes se aproximando, e ela se deu conta de que apesar daquela luta ter durado uma eternidade, pouco tempo havia se passado desde que chegara. Levantou, foi ao quarto se vestir, enfiou algumas coisas na mochila e saiu da casa pelos fundos. Roubou uma motocicleta do outro lado da rua, no jardim de um vizinho que ela conhecia há anos, deu partida e disparou com velocidade, ignorando os gritos das pessoas nas ruas e as prováveis viaturas que teria de despistar.

A estrada logo se descortinou à sua frente, mas ela não tinha ideia de para onde iria. Perdera tudo, e agora seria caçada até o fim do mundo. Seria mais fácil morrer, mas ela estaria desonrando sua mãe e sua antiga alfa, que lhe ensinara tudo que sabia sobre o povo antigo. E honra… Honra era o único valor pelo qual valia a pena lutar.

Era a única coisa que lhe restava.

Dê um pitaco, não custa nada